A primeira crônica de Nelson Rodrigues sobre o Rei Pelé
por Nelson Rodrigues*
*Publicada em 25 de março de 1958
Fonte: http://jornale.com.br/zebeto/2012/08/19/a-primeira-cronica-de-nelson-rodrigues-sobre-o-rei-pele/
Depois do jogo América x Santos, seria uma crime não fazer de Pelé o
meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade Albert
Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de
Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são
aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de
quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois
bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas
autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear,
se imperador Jones, se etíope. Racionalmente perfeito, do seu peito
parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — Ponham-no em qualquer
rancho e sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.
O que nós chamamos de realeza é, acima de todo, um estado de alma. E
Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se
sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um
adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e
piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que
não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do
mundo?”. Ele respondeu, com a ênfase das certeza eternas: — “Eu”.
Insistiram: — “Qual é o maior ponta do mundo?”. E Pelé: — “Eu”. Em outro
qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe
no que diz uma tal carga de convicção, que ninguém reage e todos passam
a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas
pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável
Pelé.
Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos.
Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompéia.
Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar.
Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no
diabo que o carregue!”. De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no
primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer
teria despachado. Pelé, não. Olha para frente e o caminho até o gol está
entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla
o primeiro e o segundo. Vem-lhe ao encalço, ferozmente, o terceiro, que
Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem
ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da
defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém
para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava
indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais
driblar Pompéia e encaçapou de maneira genial e inapelável.
Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro
futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança,
certeza, de otimismo, que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que
a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por
cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos
seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma
cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível em qualquer escrete. Na
Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os
ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de
ninguém. E é dessa atitude viril e mesmo insolente que precisamos. Sim,
amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos
adversários uns pernas-de-pau.
*Publicada em 25 de março de 1958
Fonte: http://jornale.com.br/zebeto/2012/08/19/a-primeira-cronica-de-nelson-rodrigues-sobre-o-rei-pele/
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