sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

DISCOTECA BÁSICA

ARNALDO BAPTISTA

LOKI? (1974)


(Edição 43,Fevereiro de 1989)

No pop brasileiro, são raros os que driblaram a barreira lingüística e edificaram trabalhos fundamentais. Em meio às síndromes progressivas, à invasão da Nordésia e do "rockão pauleira", no início de 74, o LP em questão surgiu não apenas como antídoto a essas tendências, mas também como uma obra única e radical do rock brasileiro.
Gravado em terríveis condições emocionais - Arnaldo havia perdido Rita Lee para sempre -, após sua saída dos Mutantes, o disco conta, além da participação de três ex-integrantes (o baterista Dinho, o baixista Liminha e Rita nos backing-vocals), com arranjos de Rogério Duprat. A gravação feita às pressas proporcionou um punch inigualável e, dado seu estado emocional, Loki? acabou por ser o maior tratado existencial do rock brasileiro, algo digno do desespero suicida da nouvelle vague, da dolorosa raiva incontida dos angry young men ingleses e de poetas visionários que enxergaram o lado obscuro da realidade.
Arnaldo demonstrou o que significa amar até perder o nome, buscar os paraísos artificiais a partir da desintegração da alma e percorrer os porões proibidos dos sentimentos, dando vazão aos abismos da vida e anunciando esboços da morte tateada, ainda que não consumada. Nessas antevisões, ele já parecia estar ciente das amargas metamorfoses que delineariam seu destino tatuado por uma tentativa de suicídio em 1980, após ter criado a alucinada Patrulha do Espaço.
Se, textualmente, provou genialidade, em nível musical nada deixou a dever; ou seja, a partir de sua voz arrancada do âmago e de um sensível piano de concepção clássica, ele percorre o tecido rock com eclética maestria, indo das mais tristes baladas até progressive rocks, passando por tons de bossa, jazz, funk e blues.
A primeira faixa do LP, a linda rock'n'roll ballad "Será Que Eu Vou Virar Bolor?", usando o título como mote, traça ironicamente um paralelo entre o futuro de seu amor e o do rock'n'roll, ambos ameaçados de extinção. A seguinte "Uma Pessoa Só", arranjada por Duprat, remonta os lindos sonhos dourados de 71/72, quando os Mutantes viviam em comunidade na Serra da Cantareira, numa trip coletiva em que era possível ser "uma pessoa só". "Não Estou Nem Aí" é uma beat-ballad pulverizada por tons bluesísticos/jazzísticos em que, sombreado pela (im)possibilidade de esquecer os "males", ele desafia a morte de forma sarcástica. Em "Vou Me Afundar na Lingerie", um bluesy-popster de primeira linha, instala a evasão absoluta do mundo real "deslanchando bem embaixo" e propondo afogar as mágoas no deslumbre da natureza e na relatividade das pequenas. A instrumental "Honky Tonky" é um delicioso mergulho ao piano.
A segunda fase traz a memorável "Cê tá Pensando Que Eu Sou Loki?", esmerado exercício bossístico que desbanca a loucura, mas não exime o prazer pelas viagens. Na baladaça "Desculpe", penetra na angústia passional, um "Jealous Guy" à brasileira, que sentindo "o pulso de todos os tempos" exige o amor a qualquer custo. Na fragmentada "Navegar de Novo", desvenda sua particular "passagem das horas" e as dimensões (im)possíveis do tempo. "Te Amo, Podes Crer", uma balada de amour fou, encarna o pranto de um abandonado que revela: "Dentro de algum tempo eu paro de tocar/espero o apocalipse de então eu te encontrar", um verso que resumiria profeticamente seu futuro. Fechando, a folk-psicodélica "É Fácil", microssíntese do amor absoluto.
Se hoje sua obra é mítica, saiba que Arnaldo pagou muito caro por toda essa paixão levada às últimas conseqüências. "Já leu todos os livros" e sabe que "a carne é triste".


Fernando Naporano


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