ARNALDO BAPTISTA
LOKI? (1974)
(Edição 43,Fevereiro de 1989)
No pop brasileiro, são raros os que driblaram a barreira lingüística
e edificaram trabalhos fundamentais. Em meio às síndromes progressivas,
à invasão da Nordésia e do "rockão pauleira", no início de 74, o LP em
questão surgiu não apenas como antídoto a essas tendências, mas também
como uma obra única e radical do rock brasileiro.
Gravado em terríveis condições emocionais - Arnaldo havia perdido
Rita Lee para sempre -, após sua saída dos Mutantes, o disco conta, além
da participação de três ex-integrantes (o baterista Dinho, o baixista
Liminha e Rita nos backing-vocals), com arranjos de Rogério Duprat. A
gravação feita às pressas proporcionou um punch inigualável e, dado seu
estado emocional, Loki? acabou por ser o maior tratado existencial do
rock brasileiro, algo digno do desespero suicida da nouvelle vague, da
dolorosa raiva incontida dos angry young men ingleses e de poetas
visionários que enxergaram o lado obscuro da realidade.
Arnaldo demonstrou o que significa amar até perder o nome, buscar os
paraísos artificiais a partir da desintegração da alma e percorrer os
porões proibidos dos sentimentos, dando vazão aos abismos da vida e
anunciando esboços da morte tateada, ainda que não consumada. Nessas
antevisões, ele já parecia estar ciente das amargas metamorfoses que
delineariam seu destino tatuado por uma tentativa de suicídio em 1980,
após ter criado a alucinada Patrulha do Espaço.
Se, textualmente, provou genialidade, em nível musical nada deixou a
dever; ou seja, a partir de sua voz arrancada do âmago e de um sensível
piano de concepção clássica, ele percorre o tecido rock com eclética
maestria, indo das mais tristes baladas até progressive rocks, passando
por tons de bossa, jazz, funk e blues.
A primeira faixa do LP, a linda rock'n'roll ballad "Será Que Eu Vou
Virar Bolor?", usando o título como mote, traça ironicamente um paralelo
entre o futuro de seu amor e o do rock'n'roll, ambos ameaçados de
extinção. A seguinte "Uma Pessoa Só", arranjada por Duprat, remonta os
lindos sonhos dourados de 71/72, quando os Mutantes viviam em comunidade
na Serra da Cantareira, numa trip coletiva em que era possível ser "uma
pessoa só". "Não Estou Nem Aí" é uma beat-ballad pulverizada por tons
bluesísticos/jazzísticos em que, sombreado pela (im)possibilidade de
esquecer os "males", ele desafia a morte de forma sarcástica. Em "Vou Me
Afundar na Lingerie", um bluesy-popster de primeira linha, instala a
evasão absoluta do mundo real "deslanchando bem embaixo" e propondo
afogar as mágoas no deslumbre da natureza e na relatividade das
pequenas. A instrumental "Honky Tonky" é um delicioso mergulho ao piano.
A segunda fase traz a memorável "Cê tá Pensando Que Eu Sou Loki?",
esmerado exercício bossístico que desbanca a loucura, mas não exime o
prazer pelas viagens. Na baladaça "Desculpe", penetra na angústia
passional, um "Jealous Guy" à brasileira, que sentindo "o pulso de todos
os tempos" exige o amor a qualquer custo. Na fragmentada "Navegar de
Novo", desvenda sua particular "passagem das horas" e as dimensões
(im)possíveis do tempo. "Te Amo, Podes Crer", uma balada de amour fou,
encarna o pranto de um abandonado que revela: "Dentro de algum tempo eu
paro de tocar/espero o apocalipse de então eu te encontrar", um verso
que resumiria profeticamente seu futuro. Fechando, a folk-psicodélica "É
Fácil", microssíntese do amor absoluto.
Se hoje sua obra é mítica, saiba que Arnaldo pagou muito caro por
toda essa paixão levada às últimas conseqüências. "Já leu todos os
livros" e sabe que "a carne é triste".
Fernando Naporano
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