terça-feira, 22 de novembro de 2011

GARÇA

Foto de Ricardo Silva

marrom era a água rasa que vinha do mangue
a faixa do recife a separar o rio do mar cortava a paisagem e lançava um desafio através do olhar
a passos largos, quase que como um santo a andar sobre as águas, chegou lá
e logo viu que num ponto daquela barreira para o verde da água salgada naquela hora ela conseguia ultrapassar as catedrais, os ouriços, moluscos, para cair feito uma cachoeira a formar uma pequena piscina antes de invadir o marrom da outra água
ali ele entrou porque queria conversar com iemanjá, como sempre fez nos mergulhos pelos mares do mundo
sentiu embaixo a areia grossa e fofa e também uma manta macia talvez de plancton acomodado sobre uma parte submersa
se acomou como se fosse fazer uma oração silenciosa
foi aí que deus pousou
pertinho, a menos de três metros
tinha as penas tão brancas que, naquela hora, com o sol do fim da tarde a iluminá-lo, brilhava, mas sem incandescer
o pescoço em forma de "s" era móvel
ele esticava para ver longe, ou encolhia para olhar para baixo
os olhos penetrantes estavam encaixados nos lados de uma cabeça pequena e aerodinámica, como todo o resto do corpo
um bico fino e preto parecia uma pinça
o corpo pequeno, de ave
as pernas finas como dois arames móveis
os pés delicados
quando as ondas eram fortes demais ele subia suavamente como na cena que imaginamos da ressurreição do cristo
e pousava do mesmo jeito
os olhos vasculhavam toda aquela floresta negra em miniatura
e sempre achava o alimento
que alcançava com um gesto firme e seguro - uma estocada para a vida
ficou ali o tempo suficiente para aquele bicho homem pensar em toda existência dos seres, mesmo sem pensar nisso
com o corpo todo mergulhado na água ele se sentiu parte do universo natural, num momento raro da vida
depois de muito tempo virou as costas para deixar deus em paz, mesmo sabendo que ele não tinha se incomodado com a presença
mergulhou então para voltar ao marrom da Terra
foram poucos metros sob a água misturada
quando o peito tocou a areia do leito do rio ainda raso ele respirou e olhou para deus
que bateu asas e saiu num vôo rasante sobre aquela faixa
a separar o rio do mar e o homem da sua essência
 
 ZÉ BETO

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