Por Roberto José da Silva
Os relatos vieram na sequência e novamente entraram como se fossem facas
a perfurar para sangrar, fazer sofrer – e nunca esquecer, porque é
assim mesmo. Um garoto desesperado dentro de um carro, se debatendo e,
ao mesmo tempo, pressionando a buzina do carro para que o salvassem.
Alguém olhando pelo vão da porta de um quarto e o corpo do amigo rígido,
morto, policiais fazendo perícia e seringas usadas espalhadas pelo
chão. Os dois usavam cocaína de forma injetável, como eu, dezoito anos
atrás. Um conseguiu ajuda – o outro, não. Um pode voltar a ter controle
sobre a própria vida. O outro foi embora como muitos e é um sinal de
alerta para quem ainda está dentro do universo do uso e para os que
trilham o caminho da sobriedade – só por hoje. Há um forte preconceito
contra este tipo de drogadição, inclusive entre os que estão na
drogadição. Mortes por overdose em consequência do uso de drogas
injetáveis são iguais às causadas por outras drogas, inclusive as
chamadas lícitas, como o álcool. Perde-se a vida porque não se conseguiu
controlar a doença. Cenas fortes como a relatada também acontecem com
alcoólatras, por exemplo. Perdi um amigo que teve falência múltipla dos
órgãos depois de ser internado várias vezes. Antes da último, ele não
conseguia mais ir ao banheiro e o chão da sala da sua casa era usado
como vaso sanitário. Sempre digo que sou dependente principalmente das
drogas que não usei. Alcoólatra, parei de beber há 22 anos. Substituí a
droga pela cocaína. Cheirei e depois injetei. Três internamentos. Brinco
nas palestras dizendo que comecei no líquido, passei para o sólido em
forma de pó e depois voltei para o líquido para jogar nos canos, como
dizem no universo paralelo. Não morri – e o que quero mais? Ao ouvir os
dois relatos um véu de tristeza encobriu minha alma e eu fiquei quieto
num canto. Ao guri que teve convulsão eu pude falar. Ao outro, não. Pude
relatar que, como ele, tive sorte de não morrer na maior das solidões,
porque ser o vício te leva a este lado escuro que todos têm, mas só
poucos o frequentam – paradoxalmente em busca de uma luz que não
conseguimos enxergar ao ponto de arriscarmos as nossas próprias vidas. O
uso da droga é sintoma de uma outra doença, que é a emocional. A grande
dificuldade da recuperação é este entendimento. É preciso abrir todas
as guardas e, através da palavra, que é, em suma, o caminho para retomar
a caminhada, se olhar para saber que somos fracos, que somos fortes,
que somos seres com força suficiente para caminhar, voar, sem precisar
de nada. Em resumo: aprender a aceitar tudo como é, a normalidade, coisa
que sempre nos pareceu um mistério pesado demais. O que acontece dentro
de uma clínica de recuperação é esta maravilhosa oportunidade de se
saber que é possível viver sem a droga e também que o caminho da
terapia, da conversa, que, como disse um dos psiquiatras que conheci no
Pinel, onde me internei pela segunda vez, pode ser o padre, o pastor ou o
amigo onde a conversa flui sem amarras, é o que baliza nossa salvação. A
simples e fantástica lição dos Alcoólicos Anônimos do “só por hoje” é
uma das grandes chaves de se afastar do sofrimento que toma conta do
dependentes e dos que estão à sua volta. O amigo a quem pedi ajuda há 18
anos, também um dependente em recuperação há mais de 20 anos, uma vez
disse que esta doença é como um tubarão que guardamos dentro do peito e
depende de nós oferecermos alimento ou não para ele. O alimento somos
nós mesmos. Relatos como o que ouvi me deixam triste porque uma vida se
foi sem que o jovem tenha conseguido o que é um verdadeiro e possível
“milagre”. Me deixam alegre porque o outro se salvou e conversou com
quem, como ele, espero, pode agradecer à vida.
FONTE: http://jornale.com.br/zebeto/2012/10/24/aos-que-ainda-sofrem-2/
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