quarta-feira, 24 de outubro de 2012

AOS QUE AINDA SOFREM

 Por Roberto José da Silva

Os relatos vieram na sequência e novamente entraram como se fossem facas a perfurar para sangrar, fazer sofrer – e nunca esquecer, porque é assim mesmo. Um garoto desesperado dentro de um carro, se debatendo e, ao mesmo tempo, pressionando a buzina do carro para que o salvassem. Alguém olhando pelo vão da porta de um quarto e o corpo do amigo rígido, morto, policiais fazendo perícia e seringas usadas espalhadas pelo chão. Os dois usavam cocaína de forma injetável, como eu, dezoito anos atrás. Um conseguiu ajuda – o outro, não. Um pode voltar a ter controle sobre a própria vida. O outro foi embora como muitos e é um sinal de alerta para quem ainda está dentro do universo do uso e para os que trilham o caminho da sobriedade – só por hoje. Há um forte preconceito contra este tipo de drogadição, inclusive entre os que estão na drogadição. Mortes por overdose em consequência do uso de drogas injetáveis são iguais às causadas por outras drogas, inclusive as chamadas lícitas, como o álcool. Perde-se a vida porque não se conseguiu controlar a doença. Cenas fortes como a relatada também acontecem com alcoólatras, por exemplo. Perdi um amigo que teve falência múltipla dos órgãos depois de ser internado várias vezes. Antes da último, ele não conseguia mais ir ao banheiro e o chão da sala da sua casa era usado como vaso sanitário. Sempre digo que sou dependente principalmente das drogas que não usei. Alcoólatra, parei de beber há 22 anos. Substituí a droga pela cocaína. Cheirei e depois injetei. Três internamentos. Brinco nas palestras dizendo que comecei no líquido, passei para o sólido em forma de pó e depois voltei para o líquido para jogar nos canos, como dizem no universo paralelo. Não morri – e o que quero mais? Ao ouvir os dois relatos um véu de tristeza encobriu minha alma e eu fiquei quieto num canto. Ao guri que teve convulsão eu pude falar. Ao outro, não. Pude relatar que, como ele, tive sorte de não morrer na maior das solidões, porque ser o vício te leva a este lado escuro que todos têm, mas só poucos o frequentam – paradoxalmente em busca de uma luz que não conseguimos enxergar ao ponto de arriscarmos as nossas próprias vidas. O uso da droga é sintoma de uma outra doença, que é a emocional. A grande dificuldade da recuperação é este entendimento. É preciso abrir todas as guardas e, através da palavra, que é, em suma, o caminho para retomar a caminhada, se olhar para saber que somos fracos, que somos fortes, que somos seres com força suficiente para caminhar, voar, sem precisar de nada. Em resumo: aprender a aceitar tudo como é, a normalidade, coisa que sempre nos pareceu um mistério pesado demais. O que acontece dentro de uma clínica de recuperação é esta maravilhosa oportunidade de se saber que é possível viver sem a droga e também que o caminho da terapia, da conversa, que, como disse um dos psiquiatras que conheci no Pinel, onde me internei pela segunda vez, pode ser o padre, o pastor ou o amigo onde a conversa flui sem amarras, é o que baliza nossa salvação. A simples e fantástica lição dos Alcoólicos Anônimos do “só por hoje” é uma das grandes chaves de se afastar do sofrimento que toma conta do dependentes e dos que estão à sua volta. O amigo a quem pedi ajuda há 18 anos, também um dependente em recuperação há mais de 20 anos, uma vez disse que esta doença é como um tubarão que guardamos dentro do peito e depende de nós oferecermos alimento ou não para ele. O alimento somos nós mesmos. Relatos como o que ouvi me deixam triste porque uma vida se foi sem que o jovem tenha conseguido o que é um verdadeiro e possível “milagre”. Me deixam alegre porque o outro se salvou e conversou com quem, como ele, espero, pode agradecer à vida.

FONTE: http://jornale.com.br/zebeto/2012/10/24/aos-que-ainda-sofrem-2/

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