QUADRO A QUADRO
Qualquer um que tenha assistido King Kong*
(1933), Simbad e a Princesa* (1958) ou Fúria de Titãs* (1981) viu
magníficos exemplos de uma das mais antigas técnicas de efeitos especiais do
cinema: a animação quadro a quadro (stop motion animation), também
conhecida por animação dimensional. Por essa técnica, um pequeno modelo
articulado é fotografado em seqüência, enquanto um animador muda um pouco sua
posição entre cada foto. Ao ser exibida uma após a outra, como em um desenho
animado, tem-se a ilusão de que o modelo move-se por conta própria. Apesar de
remontar aos primórdios do cinema, dois nomes popularizaram essa técnica: o
falecido Willis O´Brien e Ray Harryhausen, sendo que este elevou-a à categoria
de arte.
Ray Harryhausen nasceu em 29 de junho de 1920 em Los Angeles,
Califórnia. Ao assistir King Kong, quando tinha 13 anos, Harryhausen
apaixonou-se pelo filme e elegeu Willis O´Brien, o autor de seus efeitos
especiais, como o maior de seus ídolos. Desde então e até 1981, ele realizou
seus sonhos de infância criando seus próprios épicos recheados de criaturas
fantásticas, animadas pela magia quadro a quadro.
“Sempre gostei de figuras esculpidas e modelos.
Quando assisti King Kong, descobri que podia fazer meus modelos
moverem-se quadro a quadro. Imediatamente arranjei uma câmara, e o que de
início era um hobby virou minha profissão”, relembra. Também apaixonado
pela ficção científica, conheceu seu melhor amigo Ray Bradbury, o aclamado
autor do clássico livro Crônicas Marcianas, muito antes de ambos
realizarem seus sonhos de infância. Os dois nunca trabalharam juntos, o que é
uma pena, já que as visões poéticas de Bradbury casariam perfeitamente com as
imagens cinemáticas de Harryhausen. “Conheci Ray em 1938”, Harryhausen lembra,
“quando entrei para a Liga de Ficção Científica de Los Angeles, formada por
jovens que se reuniam para falar sobre estações espaciais e viagens à Lua e
Júpiter.
Todo mundo achava na época que éramos malucos. Na realidade, éramos
proféticos, e lá estava Ray. Ele estava escrevendo para a revista do grupo,
chamada Imagination. Logo eu estava fazendo ilustrações para ela. Nos
reunimos por vários anos todas as quintas-feiras, era muito divertido.
Continuamos amigos até hoje, volta e meia falando em fazer um filme juntos.”
Foi nos anos 30 que Harryhausen realizou seus primeiros experimentos de
animação, com a câmara de um amigo emprestada. Iniciou um ambicioso projeto
chamado Evolução, mas decidiu abandoná-lo quando Disney lançou Fantasia*.
As cenas de apogeu e extinção dos dinossauros, apresentadas no desenho Disney,
eram praticamente iguais às da produção independente de Harryhausen.
Desenho de Ray Harryhousen
Após servir no exército e realizar alguns
curta-metragens institucionais, Harryhausen pôde finalmente utilizar
intensamente sua técnica, na série Pupetoons produzida por George (Guerra
dos Mundos*) Pal. Com o dinheiro ganho produziu alguns curtas, Mother
Goose Stories. Mas até então, o grande acontecimento de sua vida foi ter
conhecido pessoalmente seu ídolo Willis O´Brien. Seus sonhos começaram a se
concretizar a partir do dia em que foi à casa do mestre, para exibir seus
primeiros trabalhos. O´Brien reconheceu aquele talento emergente, a ponto de,
em 1946, convidar o jovem para ajudá-lo a criar mais um gorila para as telas, Mighty
Joe Young (O Monstro do Mundo Perdido). “Foi emocionante trabalhar
com ele,” diz Harryhausen. “Eu estava tendo a chance de trabalhar junto à
pessoa cuja obra eu mais admirava, ajudando-o a preparar tudo desde o início de
Mighty Joe Young. Por ser meu mentor, eu já sabia instintivamente o que
ele queria. Enquanto ele se encarregava da produção, fui responsável pela
construção do esqueleto do gorila e por pelo menos 85% da animação.” Mesmo
arriscando sua própria vida para salvar as crianças de um orfanato em chamas, Mighty
Joe Young não repetiu o sucesso de bilheteria de King Kong. O filme,
que hoje é considerado um pequeno clássico e foi refilmado em 1998 (no Brasil
recebeu o título O Poderoso Joe*), com direito até a uma pequena ponta
de Harryhausen, garantiu o Oscar de efeitos especiais para Willis O´Brien.
Harryhausen, satisfeito por sua incursão inicial em
Hollywood, continuou criando mais alguns contos de fadas até ser convidado por
Jack Dietz para seu primeiro trabalho integral em um longa metragem, The
Beast From 20.000 Fathoms (O Monstro do Mar). A partir dele,
Harryhausen passou a desenvolver a técnica de combinar o modelo animado com
atores e cenas em movimento, que ao ser aperfeiçoada passou a ser conhecida
como Dynarama, ou Dynamation. Curiosamente, o filme foi
remotamente inspirado em um conto do amigo Ray Bradbury, The Fog Horn (A
Sereia de Nevoeiro, que foi publicado no Brasil no livro de Bradbury Contos
de Dinossauros, editora Artes e Ofícios, 1993. Bradbury dedicou este livro
a Willis O´Brien, e o prefácio foi escrito por Harryhausen). No filme, um
pré-histórico Rhedossauro é descongelado por uma explosão nuclear e viaja sob o
mar até Nova York para causar pânico e destruição, devorar policiais e ser
morto em um parque de diversões pelo novato Lee Van Cleef. O filme foi um
inesperado sucesso de bilheteria em 1952. Em 1953, através de um amigo comum,
Harryhausen conheceu aquele com quem teria uma duradoura parceria, Charles H.
Schneer. Ele havia visto o filme e gostado muito, e também tinha planos de
fazer um grande filme sobre um monstro destruindo a ponte Golden Gate.
Passaram a desenvolver idéias e scripts, enquanto tocavam outros
projetos. Fizeram juntos It Came From Beneath The Sea (O Monstro Do
Mar Revolto*, 1955, sobre um polvo gigantesco que ataca São Francisco) e Earth
Vs. The Flying Saucers (A Invasão dos Discos Voadores*, 1956, cuja
cena memorável é a de um disco voador colidindo com o Capitólio de Washington)
para a Columbia.
Para a Warner Bros, Harryhausen criou em 1956 algumas cenas de
dinossauros para o semi-documentário The Animal World, uma das
primeiras produções escritas e dirigidas por Irwin Allen. Quando Schneer
fundou sua própria companhia (Morningside Productions), em 1957, Harryhausen
pôde fazer 20 Million Miles To Earth (A 20 Milhões de Milhas da
Terra*), cuja idéia estava desenvolvendo há alguns anos. No filme, uma
espaçonave retorna de Vênus trazendo um ovo de uma criatura nativa, o Ymir. A
nave acaba caindo nas costas da Itália, o ovo se descasca e o então pequenino
Ymir começa a crescer até tornar-se um gigante. Capturado pelo Exército, é
aprisionado no zoológico de Roma para estudos. Consegue fugir e trava um feroz
combate com um elefante. Sua última batalha contra o exército ocorre no Coliseu
de Roma. O filme marcou o início da colaboração da dupla Schneer-Harryhausen
com o diretor Nathan Juran, que continuou em The 7th Voyage Of Sinbad e First
Men In The Moon. O Ymir é até hoje uma das criaturas prediletas dos fãs de
Harryhausen, e dele próprio. “Eu acho que é um bom filme, considerando o
pequeno orçamento que tivemos. Seu custo total foi somente U$ 200.000.
Talvez a maior falha desse filme seja a falta de uma trilha sonora original.
Todos meus primeiros filmes usaram músicas de arquivo. É realmente excitante
ouvir a música que um compositor do nível de Bernard
Herrmann compõe especialmente para você, como em Simbad e a
Princesa. Se o tivéssemos em 20 Million Miles... o filme ficaria bem
melhor.”
Desenho de Ray Harryhousen
A boa bilheteria do Ymir permitiu a Harryhausen e
Schneer embarcarem em uma viagem mais ambiciosa, através dos contos das 1.001
noites. O resultado foi sua primeira obra-prima, The 7th Voyage of Sinbad
(Simbad e a Princesa*). Com belas locações na Espanha, o filme mostra
Simbad (Kerwin Mathews) e sua tripulação viajarem à misteriosa ilha de Colossa,
a fim de libertar sua amada princesa do feitiço do mago Sokurah (Torin
Thatcher). Pela primeira vez, Harryhausen criou toda uma galeria de criaturas
animadas quadro a quadro, como o Ciclope, o Pássaro Roca, a Mulher Serpente,
etc. Apesar do orçamento reduzido e das interpretações no máximo razoáveis, o
filme é repleto de grandes momentos pontuados pela excepcional música de
Bernard Herrmann, destacando-se o perfeitamente sincronizado duelo de Kerwin
Mathews com o esqueleto. Para esta cena, Herrmann compôs um concerto de
castanholas e xilofone, que soa como ossos batendo. Após esse grande sucesso,
em 1959 Harryhausen mudou sua base de operações para a Inglaterra, em razão de
haver um novo processo de efeitos especiais à base de sódio, e lá era o único
lugar onde estava disponível. O primeiro produto dessa nova fase foi The
Three Worlds Of Gulliver (As Viagens de Gulliver), e novamente
Harryhausen reuniu-se com Kerwin Mathews e Bernard Herrmann. Apesar de não
repetir o sucesso de Simbad, este filme, o primeiro que utilizou-se do processo
de sódio, é inigualável na combinação de imagens, especialmente nas cenas de
Gulliver em Lilliput. A animação quadro a quadro, apesar de fazer-se presente,
não foi o destaque, e Harryhausen teve a oportunidade de aprofundar-se em uma
variedade de outros efeitos.
A primeira realização dos anos 1960 da dupla
Schneer-Harryhausen foi Mysterious Island (A Ilha Misteriosa),
baseada na novela de Júlio Verne. Sendo a seqüência de 20.000 Léguas
Submarinas, as comparações (desfavoráveis) com o clássico filme de Walt
Disney foram inevitáveis. Mesmo assim, os fãs apreciaram bastante as cenas com
as criaturas gigantes (um caranguejo, algumas abelhas, um pássaro e um polvo
pré-históricos), além de mais uma vibrante trilha de Bernard Herrmann.
Encerrada a produção, mesmo antes da estréia de A Ilha Misteriosa,
Harryhausen já trabalhava naquele que ele considera seu melhor filme, Jason
And The Argonauts (Jasão e o Velo de Ouro).
O processo de produção
foi exaustivo (dois anos), em que Harryhausen encarregou-se praticamente de
todos os detalhes, desde o esboço dos personagens até a escolha do elenco e das
locações (cenas foram filmadas na Itália e Grécia). Apesar de mostrar uma
galeria de monstros mitológicos que incluía o gigante de bronze Talos, as
Harpias e a Hidra de Sete Cabeças, como em Simbad a cena mais lembrada é um
duelo com esqueletos. Segundo Harryhausen, a cena, que novamente foi musicada
vibrantemente por Herrmann, poderia ter um impacto ainda maior se tivesse sido
filmada à noite, o que não foi possível devido às complicações técnicas que
seriam decorrentes. O processo de combinar as cenas dos atores com as de
efeitos especiais quadro a quadro, em uma época em que usar computadores no
cinema era algo impensável, foi extremamente complexo. Além do processo ótico
em si, as cenas deviam ser cuidadosamente planificadas, com todo os movimentos
de câmera calculados. Para que o diretor não tivesse qualquer dúvida a respeito
do que ele queria, Harryhausen fazia no mínimo 600 rascunhos de cada cena.
“Para mim, a criatura mais incrível de Jason And The Argonauts foi a
Hidra de Sete Cabeças, mas o destaque sempre vai para a batalha dos esqueletos,
claro. Fiz toda a animação quadro a quadro, usando projeção de fundo em
praticamente toda a seqüência. Ensaiamos três semanas com os atores, antes de
filmar a cena. Posteriormente, na animação, conseguia filmar no máximo 13
quadros por dia, já que tinha sete esqueletos separados para manipular. Levei
quatro meses e meio para concluir apenas este segmento.”
Posteriormente, ao longo da década, Harryhausen
realizou mais alguns filmes que, apesar de serem tecnicamente impecáveis, não
repetiram o sucesso de seus predecessores. Dessa fase, que incluiu First Men
In The Moon (Os Primeiros Homens na Lua*, baseado em H. G. Wells), The
Valley Of Gwangi (O Vale do Gwangi, a retomada de um antigo projeto
de Willis O´Brien, em que cowboys descobrem um Alossauro vivo no início
do século) e One Million Years B. C. (Mil Séculos Antes de Cristo),
talvez este último tenha tido mais destaque. Uma produção da Hammer inglesa,
este foi o filme que lançou a seminua mulher-das-cavernas Raquel Welch à fama.
A trama, refilmagem de um filme dos anos 1940, envolve os conflitos entre duas
tribos pré-históricas, e como em um desenho dos Flintstones, os dinossauros,
que foram extintos milhões de anos antes do surgimento do homem na Terra, estão
presentes. Segundo Harryhausen, essa “infidelidade científica” é secundária, e
serviu bem aos propósitos do filme. Já nos anos 1970, buscando recuperar a
magia dos velhos tempos, a dupla Schneer-Harryhausen resolveu retornar às 1.001
noites com The Golden Voyage Of Sinbad (A Nova Viagem de Simbad*).
Novamente com locações na Espanha, o filme traz uma nova galeria de criaturas
bizarras para infernizar Simbad e sua tripulação, como o Homúnculo, a estátua
da deusa Kali, o Centauro de um olho só e o Grifo. John Phillip Law substituiu
com desvantagem Kerwin Mathews no papel principal. Tom Baker, que se tornaria
famoso na Inglaterra por sua atuação na série cult Doctor Who, fez o mago Koura, e a musa da
fantasia dos anos 1970, Caroline Munro, era a mocinha raptada pelo terrível
Centauro. Apesar de não chegar aos pés do primeiro Simbad, esta seqüência ainda
ofereceu muita diversão graças à magia dos efeitos especiais e à música do
veterano Miklos Rosza, que compôs uma trilha digna dos
antigos clássicos de aventura.
Quase ao final da década, Sinbad And The Eye Of
The Tiger (Simbad contra o Olho do Tigre*) encerrou a trilogia, e
infelizmente foi o mais fraco da série. Apesar de Patrick Wayne interpretar um
Simbad superior ao de John Phillip Law, o filme em si deixou a desejar. A
concepção das criaturas foi fraca (a melhor talvez tenha sido a Morsa gigante),
e bem mais interessante que elas foram as beldades Jane Seymour e Tarin Power
tomando banho nuas em um rio. Também, a pouca receptividade do filme deve-se em
parte à época de seu lançamento, 1977. Foi no ano do estouro de Star Wars*, que ofuscou os monstros pré-históricos e
mitológicos e colocou na moda os filmes espaciais. O velho Harryhausen, no
entanto, não desviou-se de seus princípios. Ao longo de sua carreira, tornou-se
um verdadeiro herói para os fãs da fantasia e da animação, pois foi uma das
poucas pessoas do cinema que continuaram a conjurar monstros, mesmo quando eles
ficaram fora de moda. Em seu primeiro e único filme da década de 1980, Clash
of The Titans (Fúria de Titãs*), Harryhausen voltou ao seu período
favorito, a antiga Grécia, com um orçamento maior que o normal, utilizando
todas as técnicas que aprendeu com o passar dos anos. Contando o tempo de
filmagem com atores, o veterano técnico e sua equipe trabalhou 2 anos neste
último épico, animando figuras mitológicas como Pégaso, Calibos e a Medusa. O
filme narra a luta do herói Perseu para conquistar a mão da bela Andrômeda,
enfrentando em seu caminho homens, monstros e deuses. Além da animação quadro a
quadro, o filme teve outros efeitos impressionantes, como o maremoto provocado
por Kraken, que destruiu a cidade de Argos.
Apesar de não ter realizado mais filmes,
limitando-se a realizar pequenas pontas (homenagens) em filmes e documentários,
Ray Harryhausen deixou um inigualável legado no cinema, e como seu mestre
Willis O´Brien, foi o ídolo e a inspiração de jovens que dedicaram toda seu
esforço e criatividade à arte da animação dimensional. Para muitos, e
principalmente para nomes como Jim Danforth (Quando os Dinossauros Dominavam
a Terra), David Allen (O Enigma de Outro Mundo*, O Jovem Sherlock Holmes)
e Phil Tippett (Star Wars Episódio V: O Império Contra-Ataca*, Robocop*),
um novo mundo foi descoberto quando assistiram, maravilhados, o Ciclope e o
Ymir fazerem coisas somente possíveis nesses filmes fantásticos, que foram
exibidos nas melhores matinês de todos os tempos.
Ray Harryhausen ganhou o
Oscar em 1991 (Prêmio Gordon E. Sawyer), pelos avanços que proporcionou nas
técnicas de efeitos visuais especiais. Peter Jackson, demonstrando todo o seu
respeito pelo veterano mestre, convidou-o para ser consultor de efeitos visuais
em sua versão de King Kong. Mais do que uma tarefa, uma bem merecida
homenagem a este velho senhor que maravilhou milhões de espectadores, por
muitas décadas.
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