sexta-feira, 7 de outubro de 2011

PHILIPPE DRUILLET

O Passado, Presente e Futuro de Druillet
Por Joaquim Ghirotti

Philippe Druillet é um dos mais importantes quadrinhistas Franceses vivos, mas curiosamente sua carreira é alvo de pouco destaque fora da França.

Junto com Moebius e Jean-Pierre Dionnet, Druillet fundou a revista METAL HURLANT em 1975. A revista foi levada dois anos depois para os Estados Unidos com o nome de Heavy Metal, chegando inclusive a ter uma edição Brasileira, que durou alguns anos.  

O exercício feito por esses franceses levou ao surgimento de toda uma geração de quadrinhos feitos para adultos, que se espalhou pelo mundo, misturando-se ao underground norte-americano e resultando em revistas como EPIC, 1984, FANTAGOR, FEVER DREAM, ANDROMEDA, SKULL, SLOW DEATH e muitas outras. No Brasil, tivemos publicações como as revistas PORRADA, CIRCO, CHICLETE COM BANANA e ANIMAL que procuraram explorar exatamente o espírito iniciado pela Hurlant.

Druillet é acima de tudo um artista multimídia. Fez séries de animação em 3D como Nosferatu e Xcalibur, vídeo-games como Ring, baseado no ciclo dos anéis de Richard Wagner, desenha móveis objetos de decoração para os Bancos Benjamin e Edmond de Rothschild, de Lugano e Genebra. George Lucas lhe pediu pessoalmente que fizesse uma ilustração de um cartaz para Star Wars.

Fez desenhos animados e filmes, seu álbum La Nuit  foi musicado e transformado em uma ópera rock pelo grupo Proton Burst. Em 1985 fez o projeto do Metro La Villette, a pedido de Jack Lang, ministro da cultura. E acima de tudo, Druillet publicou dezenas e dezenas de histórias em quadrinhos.

Mas ele sempre foi menos internacional, menos celebrado e requisitado do que Moebius, talvez seu irmão gêmeo "negativado", no sentido de que Druillet é muito menos comercial e sua arte é mais específica, presa as suas próprias características e ao seu estilo, tão pessoal. Se Moebius conseguiu fazer ilustrações do Surfista Prateado e outros heróis da Marvel, Druillet jamais demonstrou interesse por esse tipo de trabalho,  imagino que jamais queira fazê-lo.

É comum ver acusações a Druillet sobre o fato de que seus desenhos não respeitam as proporções da forma humana, mas é justamente a característica expressionista de seus trabalhos que chama à atenção.
Meu primeiro contato com sua obra se deu em 1988. Eu tinha onze anos, e estava na escola, mais precisamente no canto esquerdo da quadra de futebol, sentado com as pernas cruzadas, no intervalo, lendo a descrição de uma de suas criações mais curiosas num dicionário de quadrinhos Brasileiro dos anos 70, O MUNDO DOS QUADRINHOS, escrito por Ionaldo A. Cavalcanti.
A descrição é do curioso personagem Vuzz:
  “Vuzz é sem dúvida, a mais estranha de todas as histórias em quadrinhos, Vuzz foi extraído da série Lone Sloane, de Phillip Druillet, em 1972..Druillet conta com poucas palavras (balões) e muito desenho, a saga de um monstro, a vagar entre vilas medievais e florestas fantasmagóricas, espalhando o terror. Vuzz, de cuja espada sempre escorre o sangue de indefesos, ataca, estupra, destrói, para depois matar a fome com cadáveres. É publicado em capítulos pela revista Phenix e em álbum, pela Dargaud.”
Ao lado, havia uma pequena ilustração de Vuzz.
Li isso quando tinha 11 anos de idade, e a descrição me causou uma impressão duradoura. Uma mistura de repulsa pela idéia absolutamente vil, degradante, violenta, escatológica e niilista que eu havia acabado de ler, mas uma profunda curiosidade, e uma grande vontade de ler algo mais.
Onde eu poderia ler aquilo, nos anos 80, no Brasil?
Como o próprio Druillet me disse, a arte do horror e do fantástico é a do tipo que quando você entra em contato, algo deve acontecer: ou você rejeita aquilo, ou abraça com sua alma.
Escolhi abraçar.
O fato de que eu estava também descobrindo os filmes de horror, o punk rock e o heavy metal se combinaram ao poder da descrição que li neste livro. A idéia de uma história voltada aparentemente exclusivamente, para algo tão extremo e perturbador me chocou profundamente. Como podia alguém dedicar a sua arte apenas a sexo e violência? Claro, quando finalmente fui ler os álbuns de Vuzz, a coisa não era exatamente assim. Vuzz é, segundo o próprio Druillet, muito inspirado no Expressionismo Alemão, que marcou o cinema mudo germânico. Por isso a atenção aos cenários distorcidos, e talvez por isso mesmo a pequena quantidade de diálogos, apesar de essa não ser essencialmente uma característica expressionista, mas Vuzz tem muito de Caligari sim.
Provavelmente a mais importante criação de  Druillet é a revista Metal Hurlant. Segundo editorial do primeiro número da mesma, “No dia 19 de dezembro de 1974, as quatro horas da manhã, nos limites de Livry-Gargan e da floresta de Clichy enfim se reuniam Moebius, Druillet, Dionnet e Farkas, que à partir de agora iriam responder apenas pelo nome coletivo de Humanoides Associes.” Dionnet passa a descrever cada um dos projetos do grupo, que inclui, é claro “Produzir, a cada três meses, uma revista em quadrinhos de ficção científica, espalhando suas fantasias pútridas nesta que você segura com suas mãos calejadas ou manicuradas”

O fato é que Metal Hurlant foi efetivamente a primeira revista em quadrinhos que usou dessa mídia para fazer histórias para adultos, no Ocidente. Por mais que falemos em Alan Moore, Frank Miller, Neil Gaiman e tantos outros, os temas adultos, o questionamento político, a narrativa complexa e o foco exacerbado (mas com um objetivo) em sexo e violência, vem da Hurlant.

Nunca antes os quadrinhos ocidentais haviam sido usados em grande escala (exceção feita aos pioneiros do underground norte-americano, de poucos anos antes, que muito inspiraram os artistas da Hurlant)  para se dirigir a adultos. A revolução causada pelas histórias, fantasias delirantes, sexuais, agressivas, retratando com esmero técnico mundos distantes e deuses profanos, é pouquíssima apreciada fora da Europa continental, onde a Metal Hurlant foi publicada em edições diferentes de diversos países (Grécia, Alemanha, Espanha, Itália, etc).
A obra mais célebre de Druillet provavelmente é La Nuit, uma espécie de saga punk, sobre um grupo de motociclistas violentos em um futuro apocalíptico, feita nos anos 70. O álbum começa festivo, mostrando personagens excessivos e hedonistas; eles se drogam, tem tatuagens e cabelos compridos, dançam e cantam ao som de “Brown Sugar” dos Rolling Stones e vivem em um mundo que lembra muito os cenários da série de filmes Mad Max. A violenta celebração das personagens gradualmente chega ao fim quando Druillet começa a matar eles, um por um, de forma cada vez mais violenta, fazendo com que a narrativa culmine em uma catarse apocalíptica e destruidora na qual o próprio universo se desintegra, destruindo a tudo e a todos; sua esposa na época, Nicole, sofria de câncer.
A doença a consumiu gradualmente enquanto Philippe fazia o álbum,  desenhando à noite. No final, sua sanidade já estava no limiar da razão: ele colou fotos da esposa nas páginas, muitas delas nus delicados, enquanto desintegrava o mundo de seus personagens e os matava um a um, até implodir tudo e dissolver seu último e desesperado personagem em traços que evanescem, no último quadrinho, tentando assim, claro, matar também sua própria dor. Trata-se de uma das obras de quadrinhos mais pessoais, épicas, dolorosas e experimentais já feitas. Um trabalho de arte inigualável, grandioso e extremamente sincero. A obra virou um filme underground, nos anos 80.
O único material de Druillet que encontrei publicado no Brasil foi uma reprodução pirata, em uma revista chamada Deja Vú, dos anos 80. Mais uma tentativa dos quadrinhos brasileiros de lançar uma espécie de “Metal Hurlant” nacional. Mesmo que ilegalmente. Sua outra grande obra é Salammbô,  um álbum de quadrinhos enorme baseado no livro de Gustave Flaubert, o autor de Madame Bovary. A obra original de Flaubert era um romance histórico, misturando personagens reais com ficcionais e retratando a revolta mercenária contra Cártago e a relação entre a personagem central, Salammbô e o mercenário Matho. Alterando o original, Druillet transformou o livro do autor realista numa grotesca e violenta ópera espacial, tomada por alienígenas, máquinas futuristas e criaturas monstruosas.

Em um dia frio de Janeiro de 2008 eu chego no ateliê de Philippe Druillet, hoje em dia um senhor de 63 anos que não parece em nada com alguém que sonha e desenha as aventuras do guerreiro Vuzz, cria as viagens intergalácticas de Lone Sloane, uma espécie de pirata espacial que luta contra deuses negros, robôs malignos e alienígenas obscenos, e que transformou o clássico Salammbô em algo muito diferente do original.

Druillet  abre a porta de ferro e me recebe com sorriso caloroso, faz piadas, me mostra a mesa onde desenha; uma pintura descansa em um cavalete, aguardando o retorno do artista; observo a boca interminada da figura, que me passa uma expressão ressentida e melancólica, talvez por eu ter interrompido o trabalho de seu autor.

A sala é tomada por luminárias que ele mesmo desenhou, assim como esculturas. No canto direito, estátuas em tamanho natural de guerreiros, utilizadas na série de TV Le Rois Maudits, ocupam a parede. Druillet aperta minha mão: seus dedos estão cobertos por anéis com as tradicionais carrancas que ele utiliza para assinar seus trabalhos. Ele vai à cozinha, trás uma garrafa de vinho branco, enche meu copo, e o dele, e começamos a entrevista.

Pergunto a Philippe como ele descobriu que queria ser um artista, e como percebeu que essa era, por assim dizer, sua vocação.

 “Cheguei a Espanha com um ano, e meu pai morreu quando eu tinha oito anos”, ele diz. “Morei esses oito anos em Figueiras, antes de voltar da França, pois meu pai havia apoiado o nazismo durante a ocupação Francesa, não podíamos voltar. Figueiras é a cidade de Salvador Dalí, e a imagem sempre foi algo muito forte para mim, sempre teve um poder muito grande. As crianças de hoje estão o tempo todo na internet, em vídeo-games, um desenho não diz muito a elas.  Nunca me esqueço dos dois primeiros filmes que vi e o poder de sua imagem sobre mim. Um deles foi “O Sepulcro Indiano” de Fritz Lang, outro, uma adaptação de Shakespeare que jamais consegui identificar. Essas imagens me deixaram impressionado. Uma vez, quando eu tinha seis anos, na escola, misturaram minha classe com alunos mais velhos. Eu fiquei ao lado de um menino que tinha quinze ou dezesseis anos e esse rapaz, com uma folha de papel e um lápis começou a desenhar um porto, um barco, gaivotas e ondas. Quando eu percebi que com um lápis um ser humano pode representar imagens, eu disse “É isso!”, e decidi que era isso que eu queria fazer. Também fiz teatro mais tarde, quando era adolescente, eu queria ser ator, mas tive que escolher. Com 16 anos eu trabalhava como fotógrafo, mas sempre li quadrinhos. Tínhamos os quadrinhos Americanos, os Belgas, e os quadrinhos Franceses, claro. Já nos anos 60, nós percebíamos que algo deveria ser feito para reinventar os quadrinhos Franceses.

Essa vontade de mudar vinha de uma mistura das HQs underground americanas (Crumb, Corben, Vaughn Bode, Gilbert Shelton) da música pop e do cinema. Minha escola foi a literatura americana, Lovecraft.... O cinema Expressionista Alemão, Caligari, Nosferatu... Eu ia muito aos museus e ao cinema, e pensamos que poderíamos misturar tudo isso. Eu não tive escola ou formação formal e tive que me ensinar as coisas. Na arte nada se cria, apenas nos atualizamos. Nos inspiramos no mundo em que vivemos, e o atualizamos. Gustave Doré e Goya, Bosch, Bacon, me inspiraram muito. Os reis magos que eu tinha em cima do meu berço eram Drácula, Frankenstein e o Lobisomen (risos). Lia Lovecraft e isso me fascinou muito, assim como Michael Moorcock. Antes de 1968 ninguém queria tocar em meus quadrinhos, mas nós tínhamos certeza de que era possível fazer algo novo, os quadrinhos tinham que ter uma nova “misé en page”, por assim dizer, e fico muito lisonjeado quando dizem que existe, nas Histórias em Quadrinhos Francesas, um “antes do Druillet” e um “depois do Druillet”, principalmente no que diz respeito a organização de elementos numa página de quadrinhos.


Fonte: http://www.maissoma.com/2008/5/19/entrevista-phillipe-druillet

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