terça-feira, 18 de outubro de 2011

BLOW UP

DEPOIS DAQUELE BEIJO - Michelangelo Antonioni, 1966

Por Rodrigo Carreiro

A marca registrada de Michelangelo Antonioni é a incomunicabilidade. No dicionário informal dos cinéfilos de todo o mundo, essa palavra complicada se tornou sinônimo dos filmes do cineasta italiano, por seus retratos agudamente críticos dos valores da burguesia (o casamento, a amizade, a família).
Antonioni vê o homem do século XX como um prisioneiro do código de condutas erigido pela sociedade em que vive. “Blow Up – Depois Daquele Beijo” (Blow Up, Inglaterra/Itália, 1966), que ele fez na Inglaterra, é talvez o mais instigante e transcendente dos filmes que fez, porque revolve a mesma temática com a habitual competência, mas consegue ir além disso.

Antonioni baseou livremente a narrativa de “Blow Up” (uma expressão que, traduzida livremente, pode significar “ampliação fotográfica”) em um conto do escritor argentino Julio Cortázar. O contista inclusive aparece nos filmes; ele é um dos mendigos retratados na série de fotos que o protagonista, o fotógrafo de moda Thomas (David Hemmings), prepara para um livro.

O longa-metragem é pesado, hermético e quase não tem diálogos. É um passo firme de Antonioni para retratar o homem como um ser cujo livre-arbítrio é uma ficção, uma teoria irrealizável, pois não existe discurso ou ação que consiga praticar capaz de livrar-lhe do tédio, das amarras sociais, e em última instância da própria noção de felicidade. A felicidade, parece dizer Antonioni, só pode ser encontrada fortuitamente, em breves instantes, e logo desaparece.


“Blow Up” é o retrato de um desses momentos, que aparecem muito raramente na vida de Thomas. O sujeito é um dos mais ricos, famosos e requisitados fotógrafos fashion da “swinging London” (o ambiente febril vivido na capital inglesa, em meados dos anos 1960). Possui um Rolls Royce conversível, uma bela casa, e tem dezenas de modelos gostosas ajoelhando-se a seus pés. Em teoria, leva uma vida de sonho. Mas, na prática, isso não poderia ser mais diferente. A vida de Thomas parece mais um pesadelo sem fim.

Thomas é o retrato do cansaço. Não do cansaço físico, mas de um tipo de cansaço bem mais difícil de derrotar: o cansaço moral. O cansaço da alma. Ele tem tudo, mas não é feliz; vive em estado permanente de tédio. Sua vida chique já se transformou em rotina, uma rotina na qual ele está preso, sem que seus esforços desesperados para sair da letargia surtam qualquer efeito. “Fiquem de olhos fechados que eu já volto”, diz ele a um grupo de garotas, que posa nos estúdios chiques em que trabalha, momentos antes de escapulir por uma porta e sumir durante o resto do dia. Thomas trata funcionários e modelos à base de rompantes de agressividade. Ele tem um comportamento angustiante.

Em um desses dias indolentes, em que acaba de comprar uma hélice gigantesca apenas porque quer e pode (para romper a rotina), Thomas acaba em um parque. Vê nele um casal se beijando, uma cena banal que, mesmo assim, lhe excita. Ele fotografa tudo. É percebido pela mulher, que tenta lhe pedir o filme. Ele recusa. Mais tarde, quando revela o rolo e o submete a incessantes ampliações (daí o título original), Thomas descobre que pode ter fotografado um assassinato em andamento. O resto do filme será construído em torno das tentativas de Thomas em desvendar aquilo que realmente fotografou.

O resultado da investigação é o que menos interessa a Antonioni.
O cineasta acreita que os esforços de Thomas para descobrir a trama por trás das fotos são a chave para o breve momento de felicidade que ele experimenta. Enquanto investiga o caso, Thomas sai da rotina e, por isso, é feliz. Obviamente, essa felicidade é um estado transitório, e o resultado da investigação pouco importa para o que vem a seguir: a volta da rotina e, por conseqüência, do tédio.

Se for assistido como um suspense de três atos, portanto, o filme está fadado à decepção; ele é, como bem lembrou o crítico Roger Ebert, um conto de mistério sem o terceiro ato (ou seja, sem a solução final). “Blow Up” aborda a natureza da realidade. O que é real? Algo que fotografamos sem ver, e não podemos provar que vimos, pode ser considerado verdadeiro? Há algo de filosófico nessa pergunta, algo de metafísico, e Antonioni a responde a seu modo: lento, reflexivo, silencioso, com um forte teor de crítica social.

O filme exibe uma curiosa semelhança temática e estética com o também polêmico “A Tortura do Medo”, de Michael Powell. Ambos possuem um fotógrafo como protagonista; são sujeitos incomuns, sociáveis na aparência mas perturbados na essência, que desafiam as regras de conduta sociais. Stanley Kubrick , em "Laranja Mecânica", prestou homenagem a ambos os filmes.

A fotografia de cores exuberantes e movimentos de câmera elegantes de Carlo Di Palma é uma influência decisiva do épico kubrickiano.

O cineasta italiano retrata o ambiente instigante da “swinging London” com um interesse quase antropológico. Repare como Antonioni incluiu no enredo três longas seqüência representando a trinca de valores fundamentais da época (sexo, drogas e rock’n’roll), chegando sempre à mesma conclusão: nada, nem mesmo a energia da juventude e sua febril vontade de contestação, é capaz de retirar o homem da prisão social.


O longa-metragem, embalado por uma trilha discreta do jazzman Herbie Hancock, é um conjunto de seqüências antológicas. O ensaio de Thomas com a linda modelo Verushka na abertura; o quase sinfônico movimento de Thomas para fotografar o casal no parque; o posterior jogo de sedução entre Thomas e a desconhecida; a frenética cena da revelação do filme; a furiosa performance do grupo Yardbirds (com dois futuros ícones do período, Jimmy Page e Jeff Beck, dividindo o palco); tudo isso compõe um admirável e coeso mosaico cinematgráfico da melhor qualidade.
E tudo culmina como uma linda e poética seqüência de jogo de tênis imaginário que, de certa forma, resume toda a filosofia por trás do filme.

Vale ressaltar, ainda, o brilhante desempenho de David Hemmings no papel de Thomas. Ele é a alma do filme e encarna perfeitamente a frivolidade da ação retratada na tela. “Blow Up” ganha, em DVD, uma edição apenas razoável, com imagem widescreen 9×16 restaurada, trilha de áudio Dolby Digital 1.0 e dois trailers. Há ainda um comentário em áudio do estudioso de Antonioni, Peter Brunette (sem legendas), e a possibilidade de ouvir a trilha sonora isolada de Herbie Hancock.

Se você gosta de Antonioni, ou pretende descobri-lo, é uma ótima opção. Mas vá com calma. Não procure respostas fáceis no filme e nem espere uma narrativa óbvia, muito menos ágil. Antonioni faz parte do seleto grupo de autores de cinema que melhor se aproximaram do conceito de poesia.

Blow Up – Depois Daquele Beijo (Blow Up, Inglaterra/Itália, 1966)
Direção: Michelangelo Antonioni
Elenco: David Hemmings, Vanessa Redgrave, Sarah Miles, Verushka
Duração: 111 minutos

Fonte: http://www.cinereporter.com.br/criticas/blow-up-depois-daquele-beijo/

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