“Não fique perto da janela” me disse a voz do outro lado do telefone.
Era uma precaução de quem já tinha passado por aquilo e vivido
experiências como aquela – a de receber o telefonema de um drogado
pedindo ajuda no início de uma manhã como esta. Do lado de cá da linha
eu não pensava em suicídio, afinal estava me matando inconscientemente
há anos, provavelmente décadas. O quarto era de um hotelzinho na avenida
Iguaçu. Tinha chegado ali depois de passar por outro, na rua Dr.
Muricy. Na véspera ainda tentei trabalhar na redação do jornal. Nos
últimos quatro dias eu tentava dar cabo às 20 gramas de cocaína que
comprara do traficante. Como conseguia levantar dados e escrever
reportagens sobre os três times da capital é algo que até hoje não
consigo entender, mas sei que o esforço era descomunal, pois a toda hora
estava injetando a droga na corrente sanguínea. Na véspera do pedido de
socorro não consegui escrever. Avisei ao chefe da sucursal que tinha
recaído. Ainda passei os dados para um companheiro de redação e ele
escreveu as matérias do dia dentro do prazo para não atrasar o jornal.
Tentaram me impedir de sair dali. Mas eu saí. Precisava de mais uma
dose. Naquela noite tive convulsões estirado na cama do hotel da Muricy.
Se fosse uma overdose não estaria aqui contando essa história. Seria
achado morto, talvez com uma seringa espetada no braço esquerdo, onde
estavam as veias de minha preferência e uma ferida horrorosa estava
aberta. Quando telefonei não pensei em tratamento, buscar o caminho da
sobriedade ou coisa parecida. Em meio ao horror da paranóia, natural
para quem usa cocaína, não há como pensar nisso. Na verdade eu estava
cansado de me drogar e não via saída para nada. Quando entrei na
clínica, ainda restava um pouco da droga. Era o terceiro internamento
num prazo de quatro anos. O primeiro, por causa do álcool, que cortei e
substituí pela cocaína. Até hoje, nas palestras que dou como voluntário
ou onde quer que me chamem para falar dessa doença, digo que comecei no
líquido, passei para o sólido em forma de pó e voltei para o líquido, a
droga diluída para ser injetada. Isso para explicar que a dependência é a
doença e é para todas as drogas, principalmente para as que não
conheci, completo. Entrei na clínica num dia 24 de outubro como hoje. O
ano de 1994. Só por hoje não me droguei mais. Todo final de semana entro
na Quinta do Sol para ficar duas horas ao lado de quem está em
tratamento. É o meu plantão. Quando tenho oportunidade digo o que
aprendi neste tempo que é o mesmo que o de quem entrou no dia anterior
como eu entrei naquele sábado em que pedi ajuda, pois a gente descobre
que é possível viver sem a droga: somos privilegiados, pois não há
experiência de vida igual. Há sempre olhares de interrogação. Eu
completo: com a sobriedade a gente pode comparar. E aí aprendemos a dar
valor ao que é normal. Nada muda, os problemas continuam, mas retomar o
controle da própria vida é algo difícil de descrever. A possibilidade de
se controlar o uso das drogas, que é sintoma da doença que não tem cura
e cujo cerne é emocional, daí o tratamento ser feito à base de terapia
e, em alguns casos, com a ajuda de medicamentos para tal, é uma dádiva
que, infelizmente, muitos não conseguem entender – e morrem antes do
tempo por isso. Naquele dia, há 17 anos, o jornalista Marcio Varela, meu
colega da sucursal do jornal Folha de Londrina, foi me buscar depois de
recomendar que eu ficasse longe da janela. Duas semanas depois, ao
ouvir numa reunião de Alcoólicos Anônimos uma voluntária de nome Carlota
ler sobre o “Só por hoje”, a janela da vida voltou a se abrir para mim.
Estou olhando por ela até agora. Sou feliz e grato a todos que me
ajudaram e me ajudam a entender que é possível.
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