terça-feira, 25 de outubro de 2011

UMA JANELA PARA VIDA

Por ROBERTO JOSÉ DA SILVA

“Não fique perto da janela” me disse a voz do outro lado do telefone. Era uma precaução de quem já tinha passado por aquilo e vivido experiências como aquela – a de receber o telefonema de um drogado pedindo ajuda no início de uma manhã como esta. Do lado de cá da linha eu não pensava em suicídio, afinal estava me matando inconscientemente há anos, provavelmente décadas. O quarto era de um hotelzinho na avenida Iguaçu. Tinha chegado ali depois de passar por outro, na rua Dr. Muricy. Na véspera ainda tentei trabalhar na redação do jornal. Nos últimos quatro dias eu tentava dar cabo às 20 gramas de cocaína que comprara do traficante. Como conseguia levantar dados e escrever reportagens sobre os três times da capital é algo que até hoje não consigo entender, mas sei que o esforço era descomunal, pois a toda hora estava injetando a droga na corrente sanguínea. Na véspera do pedido de socorro não consegui escrever. Avisei ao chefe da sucursal que tinha recaído. Ainda passei os dados para um companheiro de redação e ele escreveu as matérias do dia dentro do prazo para não atrasar o jornal. Tentaram me impedir de sair dali. Mas eu saí. Precisava de mais uma dose. Naquela noite tive convulsões estirado na cama do hotel da Muricy. Se fosse uma overdose não estaria aqui contando essa história. Seria achado morto, talvez com uma seringa espetada no braço esquerdo, onde estavam as veias de minha preferência e uma ferida horrorosa estava aberta. Quando telefonei não pensei em tratamento, buscar o caminho da sobriedade ou coisa parecida. Em meio ao horror da paranóia, natural para quem usa cocaína, não há como pensar nisso. Na verdade eu estava cansado de me drogar e não via saída para nada. Quando entrei na clínica, ainda restava um pouco da droga. Era o terceiro internamento num prazo de quatro anos. O primeiro, por causa do álcool, que cortei e substituí pela cocaína. Até hoje, nas palestras que dou como voluntário ou onde quer que me chamem para falar dessa doença, digo que comecei no líquido, passei para o sólido em forma de pó e voltei para o líquido, a droga diluída para ser injetada. Isso para explicar que a dependência é a doença e é para todas as drogas, principalmente para as que não conheci, completo. Entrei na clínica num dia 24 de outubro como hoje. O ano de 1994. Só por hoje não me droguei mais. Todo final de semana entro na Quinta do Sol para ficar duas horas ao lado de quem está em tratamento. É o meu plantão. Quando tenho oportunidade digo o que aprendi neste tempo que é o mesmo que o de quem entrou no dia anterior como eu entrei naquele sábado em que pedi ajuda, pois a gente descobre que é possível viver sem a droga: somos privilegiados, pois não há experiência de vida igual. Há sempre olhares de interrogação. Eu completo: com a sobriedade a gente pode comparar. E aí aprendemos a dar valor ao que é normal. Nada muda, os problemas continuam, mas retomar o controle da própria vida é algo difícil de descrever. A possibilidade de se controlar o uso das drogas, que é sintoma da doença que não tem cura e cujo cerne é emocional, daí o tratamento ser feito à base de terapia e, em alguns casos, com a ajuda de medicamentos para tal, é uma dádiva que, infelizmente, muitos não conseguem entender – e morrem antes do tempo por isso. Naquele dia, há 17 anos, o jornalista Marcio Varela, meu colega da sucursal do jornal Folha de Londrina, foi me buscar depois de recomendar que eu ficasse longe da janela. Duas semanas depois, ao ouvir numa reunião de Alcoólicos Anônimos uma voluntária de nome Carlota ler sobre o “Só por hoje”, a janela da vida voltou a se abrir para mim. Estou olhando por ela até agora. Sou feliz e grato a todos que me ajudaram e me ajudam a entender que é possível.

Fonte: http://jornale.com.br/zebeto/page/2/

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