Como o nome já esclarece, trata-se de uma produção
dedicada à gastronomia, dirigido em 1973 pelo saudoso cineasta milanês Marco
Ferreri (1928-1997). No entanto, o clássico maior de Ferreri não se parece com filmes delicados como A festa de Babette
(Babettes feast, de Gabriel Axel, 1987) ou Chocolate
(Chocolat, de Lasse Hallström, 2000). Está mais para manifestos críticos
e safados como seus contemporâneos Sweet movie (de Dusan Makavejev, 1974)
e Saló (Salò o le 120 giornate di Sodoma, 1975), de Pier Paolo
Pasolini (1922-1975).
Campeão da crítica no Festival de Cannes, A comilança apenas estreou
no Brasil em 1979, depois de ser barrado pela censura. Na época, o tom corrosivo
com que Ferreri tratava tipos e ideais burgueses, aliado às cenas de sexo e
à linguagem chula, conferiram ao filme uma mística toda especial. Algumas pessoas,
assustadas com a ousadia, simplesmente não entendiam por que um diretor gastava
duas horas de película para exibir quatro marmanjos e seus maus-hábitos à mesa.
Mas muitos visualizaram nele um grande exemplar da comédia italiana dos anos
70, com sua discussão das questões existenciais de uma sociedade decadente.
Na história, homens de meia-idade, senhores de respeito, quatro amigos decidem
se enclausurar num casarão durante um fim-de-semana. Eles pretendem se matar
de tanto comer - o que não é uma metáfora.
Marcello Mastroianni (1924-1996) vive um piloto de avião, orgulhoso
de sua fama de garanhão.
Michel (Michel Piccoli), um jornalista afetado,
logo descobrirá uma tendência perigosa à flatulência. Ugo Tognazzi (1922-1990)
faz um chef dividido entre pratos bem-confeitados e imitações perfeitas
de Marlon Brando. E, finalmente, cabe ao juíz Philippe (Philippe Noiret)
o papel de paspalhão da turma.
Como não poderia faltar num banquete regado a
escatologias, algumas mulheres servem de companhia para o grupo. A corpulenta
Andréa (Andréa Ferréol) rouba a cena, com seus olhos brilhantes e sua
gulodice.
Duas décadas e meia serviram para amenizar o impacto de A comilança.
Hoje, cineastas como o austríaco Michael Haneke, de A Professora de piano
(La Pianiste, 2001), causam repulsa e revolta com a maior das facilidades.
Até mesmo qualquer besteirol norte-americano provoca constrangimento semelhante.
A genialidade do filme de Ferreri reside no seu talento em transformar toda
e qualquer cena absurda em momento de antologia, seja nos detalhes renascentistas
do casarão, no cardápio cheio de massas e vinhos, ou na peculiaridade de cada
uma das personagens. Aliás, as melhores comédias italianas da história invariavelmente
reúnem um dos quatro atores principais.
Sabe aquelas comédias dramáticas feitas aos montes nos Estados Unidos, do tipo O amor é cego (Shallow Hal, de Bobby e Peter Farrelly, 2001)? Pois
Marco Ferreri consegue aliar piadas e aspectos emotivos como ninguém. É fácil
fazer rir.
Difícil é esconder reflexões sobre os desejos e os medos humanos
debaixo das gracinhas. Assista sossegado. Filmes como A comilança não
envelhecem. Depois de bem mastigado e bem digerido, merece ser revisto várias
vezes. Só não esqueça do antiácido.
Fonte: http://omelete.uol.com.br/cinema/a-comilanca/
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