terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O CÂNTICO

de Newton Sampaio

I
Eu amo a luta, transfiguradora e fecunda, em seus agudos instantes de plenitude.
   Eu amo, eu amo a luta como se me apresenta, quando a vida sorri, e quando a vida me castiga. Porque a luta tem beleza intrínseca, como a fonte tem a água eo sol tem a luz.

II
Eu não gosto do céu nessas noites macias em que a lua romântica vai tecendo madrigais a seu amante milenário.
   Eu gosto do céu quando o sol faz doer os olhos dos homens atrevidos.
   Eu gosto do céu quando o céu enche o mundo de claridades que deslumbram.

III
Eu não gosto do mar quando as ondas só fazem carícias à praia brancacenta.
   Eu gosto do mar quando o mar é fúria desencadeada enchendo o ar com estrondejamentos de apocalipse.

IV
Eu não gosto do vento quando a folhabgem apenas baila um bailado pequenino.
   Eu gosto do vento quando os cedros descrevem curvas penosas, e toda a floresta fica gemendo na devastação absoluta.

V
Eu vejo refrações magníficas na pele de trabalhadores que suam em trabalhos rudes.
   Eu me sinto orgulhoso quando minha própria fonte é só um porejar abundante.
   Eu bebo meu suor sem nojo, como os selvagens deglutem religiosamente os restos de seus guerreiros mortos.
 
VI
Eu bendigo o rosário de inquietações que o destino me concedeu, porque por essas contas se há-de medir força de minha mocidade.
   Eu bendigo os golpes com que o mundo me faz sofrer, porque esses golpes estão pondo à prova as energias de meu espírito.
   Eu bendigo, eu bendigo a sanha dos que me combatem e a impiedade dos que me odeiam, porque, com este ódio e com esses combates, incendiarei substâncias novas do meu ser.

VII
Eu abomino as horas longas e as largadas; porque nas horas largadas e longas, não se erguerão as catedrais imperecíveis.
   Eu fujo do silêncio porque o silêncio é mensagem da noite e a noite é ausência do Sol.

VIII
Eu não quero morrer na posição que todos ensaiam, no fim do dia.
   Eu quero morrer varando o azul em saltos incríveis. Ou rasgando o chão pela força de velocidades inauditas. Ou sentindo, no fundo da vida, onomatopéias de sangue gorgolejando, de todas as carnes se abrindo…

IX
Porque o cântico do homen novo é um cântico de guerra.
   Escreve a última frase, larga a caneta. Chega-se à janela e respira fundo, deliciado.
   Consulta o relógio.
   – Tão cedo! Podia passar tudo a limpo, agora.
   Reflete.
   – Não. De noite é melhor.
   Arruma o cabelo, prepara o nó na gravata, enquanto relê os períodos mais importantes.
   – Modéstia à parte, esse negócio está bem passável. Só que me saiu um tanto bolchevista. Mas não faz mal. De vez em quando se deve assustar os burgueses…
   Veste o paletó. Examina-se no espelho. Sai do quarto assombiando um samba vitorioso.
   Na sala de jantar. Clarita estuda um figurino.
   – Que é isso? Tomando vento nas costas? Não tem medo de uma pneumonia?
   – De uma não. Só de duas.
   – Engraçadinha!
   – Fecha a porta do corredor.
   – Onde está meu guarda-chuva?
   – Pra que guarda-chuva?
   – Ora, pra quê…
   – Com esse tempo firme?
   – Tempo firme, nada! Então eu não conheço este Rio de Janeiro?
   Mira-se no espelho da étagère. E recomenda:
   – Não discuta mais com seu Gonçalves, ouviu? Não quero nem uma encrenca com os vizinhos.
   (Eu amo a luta, transfiguradora e fecunda…)
   – Mas o rádio do Português é insuportável, Raimundo.
   – Embora.
   – Você fala assim porque não passa o dia inteiro em casa, como eu.
   Não retruca. Faz o último exame no traje.
   – Bem. Vou indo.
   – Há mais tempo.
   Ganha a rua. Um automóvel passa chispando. Tapa o nariz com o lenço, por causa da poeira.
   – Maluco!
   Espera que o sinal fiquem bem aberto, antes de atravessar.
   – Vou eu aí quebrar a cabeça, por imprudência…
   (Eu quero morrer varando o azul em saltos incríveis).
   Perto do poste de parada, os homens da Companhia trabalham ruidosamente. Um negro exibe ao sol o dorso nu. Sua em bica.
   – Xexéu safado.
   (Eu vejo refrações magníficas na pele de trabalhadores…)
   O veículo não tarda.
   – Fazem um barulho, esses bondes…
   (Eu fujo do silêncio porque…)
   Procura lugar, pedindo licença a meio mundo. Senta-se.
   A perspectiva de mais um inútil dia de repartição lhe dá certa melancolia. Conforta-o, entretanto, o acontecimento da nova página.
   O bonde faz a volta da rua Bambina, e Raimundo dos Santos Filho começa a recapitular, inteiramente absorto, o “Cântico do Homem Novo”.

Fonte: http://jornale.com.br/zebeto/

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