quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

VÍCIO FRENÉTICO

Bad Lieutenant, EUA, 1992
Não é difícil para o espectador entender, mesmo após apenas alguns minutos de imagens, que Vício Frenético é um dos grandes filmes dos anos 90. Abel Ferrara ergue os pecados do Homem e os expõe incansavelmente, depois pede perdão por eles beijando os pés do Cristo que, dizem as imagens do filme, de uma forma ou de outra, a benção virá. Desde a primeira sequência, que mostra um pai aparentemente fustigado do mundo levando seus filhos para a escola, Ferrara anuncia seu discurso: Vício Frenético, em primeira instância, não é um filme sobre a falência da moral e da ética, pois o mundo todo já desmoronou para o protagonista antes mesmo do filme começar (o olhar cansado, a roupa amassada, os cabelos despenteados, a ausência de um diálogo com os filhos). Quais as funções de novas imagens, então, para além daquelas já tomaram formas certas nesse primeiro olhar? Fazer a compreensão de uma gama muito mais complexa do que aparentemente é essa história de esfacelamento de forças motrizes do Homem. A “afabilidade pessimista” de Ferrara contorna seus anseios em forma de purificação: só o perdão divino pode apagar as chamas de um corpo possuído (por si mesmo, decerto, mas também pela “sociedade do espetáculo”, diria Debord).
O filme conta a história de um tenente (seu nome não nos é dado pelo roteiro) da polícia de Nova Iorque que vive errante (a tragédia é peculiar a um Édipo, de Sófocles, pois, na semiótica do filme de Ferrara, seu protagonista também cegará diante das circunstâncias: o peso de suas escolhas poderá não ser sustentado) pelas ruas da megalópole. Drogas, sexo com despudor, corrupção, apostas. O tenente é um personagem acima de qualquer conclusão precipitada: as lágrimas engasgam, o choro é repreendido pela brutalidade de sua própria razão e o grito não tem voz. Ele é designado a conduzir uma investigação sobre o estupro de uma freira, onde foi utilizado até um crucifixo para infringir-lhe a santidade, roubando-lhe a inocência. É a descida de Ferrara ao inferno – logo ele, um católico das tradições mais rigorosas. Além desse caso bizarro, o tenente vive apostando em jogos de beisebol e, como sempre perde, volta a apostar novamente, aumentando sua dívida com os chefões do jogo. Ele passa então a ser ameaçado, mas decide arriscar com mais uma aposta – a final, segundo ele – enquanto busca os responsáveis pelo crime com a freira. Ele vai combater isso, de certa forma, entre crack e cocaína, sexo e masturbação, jogos e apostas.
A luz da ironia, não causa estranhamento que, diante de tais correlações entre os extremos atos do tenente, seja através da vingança (ele quer fazer a justiça com as próprias mãos) que o homem buscará sua redenção. Ou seja: a morte de um como salvação para outro. Mas o pior mal que infesta as ideias e a mente perversa do tenente é sua crença (numa fé explicitamente cega em coisas de fato pouco concretas) na possibilidade de uma salvação que contraria a crença interna de seu jogo com o mundo: por mais que saiba que a sua deambulação pelas ruas da cidade não está de acordo com os próprios princípios de suas crenças religiosas, ele segue agindo da mesma forma, pois realmente crê numa reversão de quadro a seu favor e não pode ficar inerte à isso. A melancolia que ele carrega em sua expressão pesada e bruta é também reflexo de um mundo em contínuo desmoronamento, mas essa queda rumo à imanência de sua própria existência vem mais de suas próprias pretensões e escolhas do que da consequência de seus atos. Na visão explosiva e despudorada de Ferrara, trata-se mesmo de um jogo de destino cerrado, esse do tenente - que o título original (Bad Lieutenant) consegue captar.
A benção ele parece conquistar a partir do momento em que senta sobre o sofá onde repousa uma imagem de Cristo. Levantar e sair, essa necessidade vigente, mesmo com todo o peso simbólico daquele plano, é um ato quase suicida. Mesmo que, desde o início, exista um fim muito escancarado aos nossos olhos (mas lembremos que, cinema, afinal, não se trata de “finais” e sim de um conjunto interno e externo de forças de precisão, que correlacionadas formam “A Imagem”), mesmo que a percepção em estado de imanência daquela personagem tão profundamente perdida em si mesma nos coloque diante de um jogo tão antropofágico quanto delicado (e, por isso mesmo, perigoso), mesmo que tudo isso faça parte do esquema de Ferrara para representar seu catolicismo conhecido, se pegarmos a própria questão da freira e da imortal cena da “conversa com Jesus” na Igreja, estamos presenciando imagens que não serão sorvidas e/ou absorvidas a revelia de suas próprias ambições. Essa cena, aliás, dimensiona as potências e dá força a uma tese no mínino defensável: de que toda e qualquer imagem está posta para ser quebrada.  Olhem novamente para cada imagem parece pedir Ferrara.

(Bad Lieutenant, EUA, 1992) 
De Abel Ferrara
Com Harvey Keitel, Victor Argo, Paul Calderon, Leonard L. Thomas, Robin Burrows, Frankie Thorn, Victoria Bastel, Paul Hipp, Brian McElroy, Frankie Acciarito
 
Fonte: http://tudoecritica.blogspot.com/search/label/Filmografias%3A%20Abel%20Ferrara

Nenhum comentário :