Não é difícil para o espectador entender, mesmo após apenas alguns minutos de imagens, que Vício Frenético
é um dos grandes filmes dos anos 90. Abel Ferrara ergue os pecados do
Homem e os expõe incansavelmente, depois pede perdão por eles beijando
os pés do Cristo que, dizem as imagens do filme, de uma forma ou de
outra, a benção virá. Desde a primeira sequência, que mostra um pai
aparentemente fustigado do mundo levando seus filhos para a escola,
Ferrara anuncia seu discurso: Vício Frenético, em primeira
instância, não é um filme sobre a falência da moral e da ética, pois o
mundo todo já desmoronou para o protagonista antes mesmo do filme
começar (o olhar cansado, a roupa amassada, os cabelos despenteados, a
ausência de um diálogo com os filhos). Quais as funções de novas
imagens, então, para além daquelas já tomaram formas certas nesse
primeiro olhar? Fazer a compreensão de uma gama muito mais complexa do
que aparentemente é essa história de esfacelamento de forças motrizes do
Homem. A “afabilidade pessimista” de Ferrara contorna seus anseios em
forma de purificação: só o perdão divino pode apagar as chamas de um
corpo possuído (por si mesmo, decerto, mas também pela “sociedade do
espetáculo”, diria Debord).
O filme conta a
história de um tenente (seu nome não nos é dado pelo roteiro) da
polícia de Nova Iorque que vive errante (a tragédia é peculiar a um
Édipo, de Sófocles, pois, na semiótica do filme de Ferrara, seu
protagonista também cegará diante das circunstâncias: o peso de suas
escolhas poderá não ser sustentado) pelas ruas da megalópole. Drogas,
sexo com despudor, corrupção, apostas. O tenente é um personagem acima
de qualquer conclusão precipitada: as lágrimas engasgam, o choro é
repreendido pela brutalidade de sua própria razão e o grito não tem voz.
Ele é designado a conduzir uma investigação sobre o estupro de uma
freira, onde foi utilizado até um crucifixo para infringir-lhe a
santidade, roubando-lhe a inocência. É a descida de Ferrara ao inferno –
logo ele, um católico das tradições mais rigorosas. Além desse caso
bizarro, o tenente vive apostando em jogos de beisebol e, como sempre
perde, volta a apostar novamente, aumentando sua dívida com os chefões
do jogo. Ele passa então a ser ameaçado, mas decide arriscar com mais
uma aposta – a final, segundo ele – enquanto busca os responsáveis pelo
crime com a freira. Ele vai combater isso, de certa forma, entre crack e
cocaína, sexo e masturbação, jogos e apostas.
A luz da
ironia, não causa estranhamento que, diante de tais correlações entre os
extremos atos do tenente, seja através da vingança (ele quer fazer a
justiça com as próprias mãos) que o homem buscará sua redenção. Ou seja:
a morte de um como salvação para outro. Mas o pior mal que infesta as
ideias e a mente perversa do tenente é sua crença (numa fé
explicitamente cega em coisas de fato pouco concretas) na possibilidade
de uma salvação que contraria a crença interna de seu jogo com o mundo:
por mais que saiba que a sua deambulação pelas ruas da cidade não está
de acordo com os próprios princípios de suas crenças religiosas, ele
segue agindo da mesma forma, pois realmente crê numa reversão de quadro a
seu favor e não pode ficar inerte à isso. A melancolia que ele carrega
em sua expressão pesada e bruta é também reflexo de um mundo em contínuo
desmoronamento, mas essa queda rumo à imanência de sua própria
existência vem mais de suas próprias pretensões e escolhas do que da
consequência de seus atos. Na visão explosiva e despudorada de Ferrara,
trata-se mesmo de um jogo de destino cerrado, esse do tenente - que o
título original (Bad Lieutenant) consegue captar.
A benção ele
parece conquistar a partir do momento em que senta sobre o sofá onde
repousa uma imagem de Cristo. Levantar e sair, essa necessidade vigente,
mesmo com todo o peso simbólico daquele plano, é um ato quase suicida.
Mesmo que, desde o início, exista um fim muito escancarado aos nossos
olhos (mas lembremos que, cinema, afinal, não se trata de “finais” e sim
de um conjunto interno e externo de forças de precisão, que
correlacionadas formam “A Imagem”), mesmo que a percepção em estado de
imanência daquela personagem tão profundamente perdida em si mesma nos
coloque diante de um jogo tão antropofágico quanto delicado (e, por isso
mesmo, perigoso), mesmo que tudo isso faça parte do esquema de Ferrara
para representar seu catolicismo conhecido, se pegarmos a própria
questão da freira e da imortal cena da “conversa com Jesus” na Igreja,
estamos presenciando imagens que não serão sorvidas e/ou absorvidas a
revelia de suas próprias ambições. Essa cena, aliás, dimensiona as
potências e dá força a uma tese no mínino defensável: de que toda e
qualquer imagem está posta para ser quebrada. Olhem novamente para cada
imagem parece pedir Ferrara.
(Bad Lieutenant, EUA, 1992)
De Abel Ferrara
Com
Harvey Keitel, Victor Argo, Paul Calderon, Leonard L. Thomas, Robin
Burrows, Frankie Thorn, Victoria Bastel, Paul Hipp, Brian McElroy,
Frankie Acciarito
Fonte: http://tudoecritica.blogspot.com/search/label/Filmografias%3A%20Abel%20Ferrara
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