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Eixo
Temático
A
crise estrutural do capital, que se desenvolve nas sociedades
capitalistas centrais, principalmente a partir da década
de 1970, é não apenas crise da produção
do capital, mas de suas instâncias sócio-reprodutivas,
como a família. Aliás, a crise da família
é a crise suprema da instância sócio-reprodutiva
do capital, pois ela é a célula-mater da sociedade.
A instituição família é dilacerada
por valores mercantis sistêmicos, que abolem elos morais
de solidariedade e dissolvendo expectativas e valores de vida
social. A crise da família possui, é claro uma determinação
de classe. O objeto ideológica da sócio-reprodutibilidade
do capital é a família burguesa e não
a família proletária, destroçada há
tempos pela modernização capitalista. É a
crise da família burguesa que irá indicar a crise
da sócio-reprodutibilidade do capital, da sua incapacidade
de constituir relações sociais capazes de promover
o desenvolvimento ampliado da personalidade humana e criar uma
vida plena de sentido. A crise da família burguesa,
que prenuncia a crise sistêmica do capital, assume diversas
formas históricas no decorrer do século XX. É
a partir da década de 1960 que apreendemos sua explicitação
sociológica mais plena nos países capitalistas centrais.
É uma crise da objetividade (e da ideologia) da família
burguesa com suas implicações no plano do gênero
(o problema da mulher) e da faixa etária (o problema da
juventude), traduzindo-se em metamorfoses nos valores, expectativas
sociais, escolhas morais, políticas, estéticas e
sexuais.
Temas-chaves:
crise estrutural do capital e instâncias sócio-reprodutivas;
família, reprodução social e crise do capital;
mulher e sociedade; juventude e sociedade; valores e estranhamento
social; classe social e ideologia.
Filmes
relacionados: “Visitor Q”, de Takachi Miike;
“O Casamento”, de Arnaldo Jabor; “Beleza Americana”,
de Sam Mendes; “Festa em Família”, de Thomas
Vintenberg; “Tempestade de Gelo”, de Ang Lee.
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Análise
do Filme
É
um dos filmes clássicos do mestre do cinema italiano, Píer
Paolo Pasolini. Produzida em 1968, roteiro (e depois livro) do próprio
Pasolini, expressa uma perspectiva particular da crise estrutural
do capital a partir de uma de suas principais instâncias
sócio-reprodutivas: a família. O que Pasolini
nos apresenta é o relato de dissolução de uma família
burguesa a partir da chegada de um misterioso hóspede. É
a representação estética da crise de reprodução
social do capital a partir de um subgênero do cinema: o drama
de família (por exemplo, só na década passada,
podemos destacar: “Beleza Americana”, “Festa em Família”,
“Tempestade de Gelo”, “Felicidade”).
Como
grupo social primordial, a família é uma das mais importantes
instâncias sócio-reprodutivas do sistema do capital como
forma de metabolismo societário. A partir da crise orgânica
do capital, ela tende a dissolver-se ou a assumir uma forma crítica.
Na verdade, o seu drama interior é o drama da reprodução
do sistema sócio-metabólico do capital. O cinema soube
tratar disso com desenvoltura, principalmente a partir da última
metade da década de 1960. Em “Teorema”, Pasolini
trata de um processo de crise estrutural que ainda estava em seus primórdios,
mas que ele soube apreender com genialidade (de certo modo, é
a partir de meados de 1970 que se desenvolve a crise estrutural do capital
com múltiplos desdobramentos na sociabilidade burguesa). Em “Teorema”,
o drama de família é o próprio drama do esgotamento
da sociabilidade burguesa.
O filme trata de um rico industrial de Milão, na Itália,
que hospeda em sua mansão um rapaz, representado por Terence
Stamp (não consta o nome do personagem). Aos poucos o estranho
muda para sempre a vida de todos do lar, da empregada à matrona.
De fato, a chegada do hóspede marca o inicio da degradação
da família burguesa, apesar de que as condições
internas da dissolução dos laços familiares já
estavam pressupostas. O que o estranho hóspede fez foi apenas
catalizar o processo de dissolução familiar. Inclusive,
teorema significa, segundo o Dicionário Aurélio, uma “proposição
que, para ser admitida ou se tornar evidente, necessita de demonstração.”
Ora, a mediação-que-demonstra o vazio profundo da interioridade
do mundo burguês é o personagem representado por Terence
Stamp. Cada personagem membro da mansão é atraído
irresistivelmente pela presença carismática do hóspede,
assumindo, a partir daí, para si, uma nova personalidade.
É
como se o hospede contribuísse para o desvelamento (e explicitação),
em cada personalidade, de um conteúdo latente, reprimido, que,
ao se exteriorizar, transfigurasse (e implodisse) o papel social de
cada personagem - a empregada Emilia, o filho Pietro, a filha Odetta,
a matriarca Lucia (representada por Silvana Mangano) e inclusive Paolo,
o pai, industrial de Milão, um figura passiva e ausente da cena
familiar.
Deste modo, “Teorema” é um drama familiar que expressa,
em si, de forma alegórica, a tragédia da sociabilidade
burguesa em crise terminal. É a partir da presença –
parousia – do hóspede misterioso, que cada personagem
nega (e afirma, ao mesmo tempo) a si próprio.
A
figura do hóspede é uma representação alegórica,
um quase-Messias, cuja passagem pelo espaço familiar anuncia
o que estava pressuposto: a dissolução da ordem do mundo
burguês. É como um Cristo que veio trazer a desordem e
não a ordem para o mundo. Seria “Teorema” uma versão
profana de um outro filme de Pasolini, “O Evangelho Segundo São
Mateus” (de 1964)? Inclusive, tanto a chegada do hóspede,
como sua partida, é anunciada por um carteiro quase-angelical,
chamado Ângelo (de Anjo?), sorridente, quase um anjo caído,
cuja simpatia se contrasta com a sisudez e circunspeção
da empregada que o recepciona. Pasolini é um diretor (e escritor)
genial e maldito, pois profaniza algo que é caro à tradição
conservadora italiana, o imaginário católico (o nome do
pai em “Teorema” é Paulo e do filho, Pedro, e da
mãe, Lucia...). Mas ele se apropria desse imaginário barroco
para traduzir a crise da sociabilidade burguesa, sua venalidade e barbárie
interior.
Pasolini trabalha com alegorias: a dissolução lenta da
família é representada pela erosão continua de
um terreno arenoso, o deserto que o industrial Paolo ira trilhar, no
final do filme. O ambiente da mansão é simples, vazio,
expressando a banalidade da existência burguesa. A absoluta incapacidade
de comunicação no mundo burguês, do fetichismo das
mercadorias, é representada pela relação silenciosa
dos personagens da família. Não existe diálogo
entre eles. A única relação que existe entre os
personagens é consigo mesmo, com seus papéis e impostações
de classe. O hóspede misterioso é um jovem regatado, também
quase-angelical, e que vive imerso em sua leitura de Rimbaud.
O hóspede implode tais papeis e impostações sociais
dos membros da família: o filho assume seu lado artístico;
a filha Odetta, jovem introvertida, aficcionada pelo pai e pelos valores
que a família representa, descobre o outro lado da vida; a matrona
Lucia encontra no hóspede um escape para sua monotonia sexual;
a empregada encontra no hóspede o verdadeiro senhor de seus desejos
reprimidos e o industrial Paolo, seu canal de interlocução
interior. O desejo na narrativa de “Teorema” é
subversivo, pois o que cada personagem descobre é uma dimensão
oculta do desejo, reprimida pelas relações sociais burguesas.
É a projeção do desejo que expõe (e decompõe)
a interioridade de cada um. O mediador do desejo reprimido é
o hóspede. É a antítese que nega a personalidade-fetiche
de cada membro da família burguesa.
O drama da família que Pasolini nos apresenta é posto
no interior de uma perspectiva de classe. Pasolini é um diretor
de visão de mundo marxista. A dissolução da família
é a dissolução da hegemonia burguesa na Itália,
de fundo católica; da sua incapacidade de conduzir a reprodução
social, representada pelo elo orgânico da família. Em “Teorema”,
Pasolini se utiliza bastante de alegorias. Quando Paolo, o industrial,
renuncia à fábrica, temos a verdadeira representação
da incapacidade hegemônica e produtiva da burguesia.
Emilia, a empregada da mansão burguesa é a personagem
proletária do drama da família. Apesar de proletária,
ela faz parte da tragédia burguesa. É um elemento marginal
(e trágico) da dissolução da ordem sócio-metabólica
do capital. Ela é o primeiro personagem da família a ser
transfigurado pela presença do hospede. É atraída
irresistivelmente por ele. Temendo não poder atrair o jovem hóspede,
tenta suicido, mas é salva (e amada) por ele. Depois que o jovem
hóspede vai embora, a empregada retorna à cidade de origem,
uma pequena localidade rural, e torna-se uma figura ascética,
alimentando-se apenas de urtigas, absolutamente incapaz de se reencontrar
com a vida normal, procurando expiar seu pecado: ter feito amor com
o hóspede misterioso. Enfim, Emilia sacrifica a sua individualidade,
colocando-a como mediação mística com a figura
transcendente do misterioso hóspede. Finalmente, ela se enterra
viva, após abandonar a idéia de retorno do hóspede
misterioso.
Se a empregada Emilia, o elo proletário do ambiente burguês,
sacrifica sua individualidade, os demais membros da família burguesa,
após a partida do hóspede, afirmam, à exaustão,
a sua individualidade. Por exemplo, o jovem filho do industrial, Pietro,
descobre seu lado artístico e sua homossexualidade latente. Na
verdade, Pietro rompe com a unilateralidade estética da vida
burguesa. A simples presença do hóspede desvela para ele,
a diversidade da sensualidade humana. Torna-se um pintor de figuras
abstratas, ininteligíveis, mas que representam sua vida autentica
(a autenticidade de uma vida inautêntica). Pietro é a representação
do artista, na perspectiva de Pasolini. A arte abstrata de Pietro é
a representação de um mundo burguês vazio. Cabe
a Pietro ser a representação estética do vazio
burguês.
De
fato, após a catarse familiar, cada personagem busca uma vida
autêntica possível. Se Pietro busca uma saída estética,
Emilia, a empregada, irá buscar uma via sacra, de uma sacralidade
ascética, que não deixa de ser uma busca de autenticidade.
Mas é uma autenticidade estranhada posta nos limites de um desejo
insurgente, mas obliterado.. A filha do industrial, Odetta, fica emudecida
numa paralisia histérica e decide, tal como a empregada Emilia,
isolar-se na sua interioridade devassada. Mas, enquanto a loucura de
Emilia possui um sentido ascético, quase de caráter místico;
a loucura de Odetta a conduz a um isolamento total. É internada
num manicômio.
O que percebemos é que, ao partir, o hóspede deixa um
vazio terrível na interioridade de cada personagem-membro da
família. A matrona da família, Lucia, rompendo com o principio
da fidelidade conjugal, tão cara à imagem católica
da matrona familiar, busca em aventuras com jovens rapazes as sensações
perdidas com o hospede e que preenchiam um vazio sexual (e afetivo).
Apesar disso, ela vive uma tristeza profunda.
O industrial Paolo, paterfamilias, dono dos meios de produção,
decide, num gesto insano, abandonar o seu papel de industrial, e como
um São Francisco de Assis, se despe em plena Estação
Central de Milão, renunciando a tudo e se põe a percorrer,
sem direção, uma área deserta. Perde a própria
sua identidade social. Tal como os demais personagens da família
burguesa, que, diante da irrupção da partida do hóspede,
reencontram de forma transfigurada, sua individualidade, Paolo só
consegue reencontrar sua individualidade, perdendo-a enquanto persona
do capital.
Existe,
é claro, um paralelo entre o destino de Emilia, a empregada,
e o do burguês Paolo. Enquanto que, quando Emilia se enterra viva
sugere, de fato, a supressão de uma individualidade angustiada;
o despojamento insano de Paolo é meramente a forma possível
do burguês afirmar uma “individualidade” inexistente.
O desnudamento do burguês é a representação
de sua incapacidade hegemônica diante do processo bárbaro
do capital. É a negação do capitalista (como suporte)
pelo capital. E sua caminhada sem direção pelo árido
deserto, ao som da Réquiem de Mozart, sugere um zumbi, um morto-vivo,
cuja nudez expressa a incapacidade de uma identidade social.
Na crise estrutural do capital, a burguesia como “classe produtora”
torna-se incapaz de encontrar a representação de si mesma.
Logo no inicio do filme, num diálogo entre operários,
surge a pergunta se todos poderiam se tornar burgueses, patrões
de si mesmo. É a idéia da própria dissolução
de uma identidade de classe. Deste modo, “Teorema”, de Píer
Paolo Pasolini, é um filme visionário, pois, em 1968,
conseguiu apreender o que, diante da lógica da financeirização,
é a verdade do capitalismo global: a burguesia, como “classe
produtiva”, perde sua identidade social, está despedia
de si, vagando pelo deserto. O capital financeiro, ao criar a ilusão
de que todos podem ser “burgueses”, ao possuírem
ações de empresas, contribui para a sintomatologia de
uma crise estrutural do capital e de suas representações
de classe, inclusive, de classe produtiva (a burguesia).
Finalmente,
é importante salientar o seguinte: o filme “Teorema”,
de Pier Paolo Pasolini, nos remete a um dos traços marcantes
da nova etapa de desenvolvimento capitalista que emergiria com a crise
estrutural do capital a partir da década de 1970: a expansividade
acelerada do metabolismo social da forma-mercadoria, expressa em
valores-fetiches, expectativas e utopias de mercado capazes de desefetivar
o ser genérico do homem.
Ora,
Pasolini é um critico voraz do americanismo como cultura
da perversidade humano-genérico. Por exemplo, seu último
filme - "Saló ou Os 120 dias de sodoma", de 1975, é
não apenas uma critica incisiva (e chocante) do fascismo, mas
pode ser lido também como uma critica radical do "capitalismo
de consumo" que, como a perversão sádica, promove
a gratificação íntima espúria ao mesmo tempo
que desefetiva o ser genérico do homem.
Crise
e expansividade – eis um dos traços característicos
da ordem burguesa. A expansividade capitalista que emerge com a globalização
neoliberal é sintoma irremediável da crise estrutural
do capital. A ordem burguesa se expande como meio de reprodução
ampliada do seu metabolismo social estranhado. Por isso, Pasolini, em
fins da década de 1960, vislumbrou um dos elementos compositivos
da globalização neoliberal que iria se disseminar pelo
planeta na próxima década: o aburguesamento universal.
“Todos nós nos tornamos burgueses”, exclama ele.
Para
Pasolini, o conceito de burguesia não possui apenas
uma significação econômica, mas uma significação
sócio-metabólica, ligada a valores de consumo. É
burguês quem se coloca meramente no horizonte do consumismo inveterado
que busca compensar através da obsessiva aquisitividade de produtos-mercadorias,
a falta de sentido da vida sob a ordem capitalista. É necessidade
intrinseca ao metabolismo social capitalista produzir individualidades
frustradas, insatisfeitas e infelizes - no trabalho e nas relações
afetivas - que buscam compensar sua deriva pessoal íntima pela
prática de consumo obsessiva. O capitalismo liberal produz individuos
aquisitivos, vorazes consumidores que não se reconhecem como
produtores ou sujeitos humanos capazes de ir além do dado. Assim,
o conceito de burguesia em Pasolini remete a um conceito moral. O burguês
é a pessoa implicada com valores aquisitivos e instrumentais.
Pasolini,
com “Teorema”, foi um visionário dos tempos neoliberais.
É claro que ele criticava a expansão do capitalismo de
consumo, que marcou o processo de modernização na Europa
meridional, como Itália e França. Foram sociedades burguesas
que no pós-guerra se “americanizaram” e incorporaram
a lógica da sociedade afluente de mercado. Mas sob a globalização
neoliberal, a lógica do aburguesamento iria assumir formas perversas,
pois iria se colocar como horizonte de valores no interior de segmentos
sociais excluidos das benesses da sociedade de consumo de massa.
Isto é, o proletário miseravel também almeja ser
burguês. Os "condenados da terra" cultivam o sonho da
aquisitividade mercantil. Se o "capitalismo de consumo" criou
indivíduos aquisitivos, o "capitalismo da exclusão
social" produziu individuos monetários sem dinheiro.
Isto é, burgueses ressentidos da sua exclusão
irremediável da forma –mercadoria.
Enfim,
no filme “Teorema”, Pasolini expõe a situação
grotesca da vida burguesa, vida humana inautentica, imersa no vazio
existencial de uma ordem familiar burguesa que se desestrutura em si
e para si. Por isso, o filme "Teorema" trata, segundo Pasolini,
de uma condição universal em sua forma extrema.
Giovanni Alves (2003/2008)
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